
Candinha e família, em 1950
Candinha se casou com Gaspar em 1930, na catedral de Santos. Ela tinha 18 anos. Ele, 20. O primeiro ano de casamento foi de rara intimidade. Os dois foram morar numa casa alugada, em parceria com outro casal amigo, Lindolfo e Eulália – que se tornariam contraparentes. A irmã de Eulália, Tereza, se casaria com Maneco, irmão de Candinha. A filha mais velha de Eulália, Norma, seria noiva de Vivaldo, o filho mais velho de Candinha (a história do noivado desfeito rende uma história que não cabe aqui). Um casal ficava na parte de cima da casa, o outro na parte inferior.
Mas o pai de Candinha, o garçom lusitano Chico Simões, não sossegou enquanto não convenceu o jovem casal a ir morar em sua casa, no bairro do Campo Grande, em Santos (a casa está de pé até hoje, mas tinha tantos anexos foi dividida em duas). Mais tarde, o irmão mais novo de Candinha, Júlio, também se casaria com a bela Maria Sâmia, filha de sírios, e constituiria família na casa, que chegou a agregar umas doze pessoas de três gerações vivendo num labirinto de puxados.
Na casa cheia de gente, Candinha assumiu o fogão. Comia-se bacalhau duas vezes por semana, e o trivial nos outros dias. O cardápio foi enriquecido por contribuições sírias, como quibes, esfihas, tabules, trazidos por Maria Sâmia, e da cozinha brasileira. A mãe de Gaspar, Rosa Eufrázia do Amaral, descendia de caiçaras e comia com as mãos.
Candinha perdeu a primeira filha, que morreu num parto complicadíssimo. Vivaldo nasceu em 1933. Valdívia, minha mãe, em 1938. Gaspar ganhava bem. Trabalhava como vendedor da Texaco. Tinha um padrão de vida bem acima da média – nos anos 1940, tinha até automóvel. O casamento era à moda antiga: Candinha ficava em casa cuidando dos filhos, Gaspar assumia o papel de provedor. Era um farrista. Há fotos dele com amigos, todos vestidos de mulher, brincando o Carnaval, e se conta que às vezes saía à noite para dançar e só aparecia de manhã. Candinha passava seu terno risca de giz para ele sair à noite e ficava em casa, esperando-o aparecer.
Era submissa, mas até certo ponto. Depois do casamento, parou de trabalhar como costureira por imposição do marido. Pois quando ele chegava alto em casa, ela aproveitava para raspar sua carteira e reforçar suas economias. Quando Gaspar acordava e perguntava do dinheiro sumido, levava uma descompostura: “Empresta dinheiro para todo mundo e depois nem lembra”. Gaspar se calava. Mão aberta, ele costumava, de fato, financiar os conhecidos e às vezes registrava as pequenas dívidas em papéis que levava no bolso. Quando ele morreu, isso Candinha não esqueceu, ninguém procurou a viúva para saldar nenhum papagaio.
Gaspar morreu em agosto de 1950, vítima de um enfarte fulminante nos braços de Candinha, poucos dias depois de testemunhar, no Maracanã, a derrota do Brasil na final da Copa de 1950. Pândego e glutão, era fã incontrolável da comida de sua mulher – embora não dispensasse uma boa cerveja e uma lingüicinha no boteco da esquina. Pouco antes de morrer, sentiu-se mal e foi ao médico, que recomendou dieta severa. Disse, obviamente sem se dar conta da gravidade do problema, que preferia morrer a privar-se da boa comida.
Candinha fechou-se em luto por alguns anos. Nos primeiros tempos, quase enlouqueceu. Ia ao cemitério todos os finais de semana. Tinha acessos de choro repentinos. Quando se aproximava a hora em que Gaspar chegava para o almoço, ela se deparava preparando a comida para ele, como se estivesse vivo, e caía em desespero. Sempre que se aproximava o mês de agosto, mesmo após muitos anos de viuvez, revivia na memória sua Via Crúcis particular. Não comentava com ninguém, só dizia que não gostava de agosto, que torcia para o mês passar logo.
Candinha nunca mais se casou nem arrumou um namorado. Dizia que não via sentido em colocar outro homem em casa, com dois filhos adolescentes para criar. Embora permanecesse fiel à memória do marido (ela morreria em agosto de 2000, aos 88 anos de idade e 50 anos de viuvez), guardava uma mágoa e soltava um de seus bordões quando se lembrava dele. “Perdoar eu perdôo, mas não esqueço”. Tudo por causa de uma escapadela do marido, da qual ela só tomou conhecimento alguns anos depois de sua morte. Certa vez, uma moça incauta apareceu na rua onde a família morava procurando por um certo Gaspar. Dizia ser sua noiva. Foi escorraçada por um vizinho. Candinha gostava de se fazer de durona, mas, um dia, contou que, como uma Dona Flor de Jorge Amado, sentia a presença do marido morto, a seu lado, todas as noites. (Fabrício)